Muita coragem é o que eu preciso. Sinto-me tão desamparada
preciso tanto de proteção...porque parece que sou portadora
de uma coisa muito pesada"
Fragmentos Clarice Lispector

A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição.
A desistência é uma revelação.
Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
A despersonalização como a destituição do individual inútil - a perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser. Pouco a pouco tirar de si, com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria pele, as características. Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível por mim
o milagre se pede, e se tem, pois a continuidade tem interstícios que não a descontinuam, o milagre é a nota que fica entre duas notas de música, é o número que fica entre o número um e o número dois. É só precisar e ter. A fé - é saber que se pode ir e comer o milagre. A fome, esta é que é em si mesma a fé - e ter necessidade é a minha garantia de que sempre me será dado. A necessidade é o meu guia.
Não. Eu não precisava ter tido a coragem de comer a massa da barata. Pois me faltava a humildade dos santos: eu havia dado ao ato de coma-la um sentido de “máximo”. Mas a vida é dividida em qualidades e espécies, e a lei é que a barata só será amada e comida por outra barata; e que uma mulher, na hora do amor por um homem, essa mulher está vivendo a sua própria espécie. Entendi que eu já havia feito o equivalente de viver a massa da barata - pois a lei é que eu viva com a matéria de uma pessoa e não de uma barata.

Ali sentada e imóvel, eu ainda não parara de olhar com grande nojo, sim, ainda com nojo, a massa branca amarelecida por cima do pardacento da barata. E eu sabia que enquanto eu tivesse nojo, o mundo me escaparia e eu me escaparia. Eu sabia que o erro básico de viver era ter nojo de uma barata. Ter nojo de beijar o leproso era eu errando a primeira vida em mim - pois ter nojo me contradiz, contradiz em mim a minha matéria.
Entendi que, botando na minha boca a massa da barata,
eu não estava me despojando como os santos se despojam
mas estava de novo querendo o acréscimo.
(O acréscimo é mais fácil de amar).
eu não queria pensar, então eu pensei. Não pude me impedir mais, e pensei o que na verdade já estava pensando.
Agora, por piedade pela mão anônima que prendo à minha, por piedade pelo que essa mão não vai compreender, eu não estou querendo levá-la comigo para o horror aonde ontem fui sozinha.
Pois o que de repente eu soube é que chegara o momento não só de ter entendido que eu não devia mais transcender, mas chegara o instante de realmente não transcender mais. E de ter já o que anteriormente eu pensava que devia ser para amanhã. Estou tentando te poupar, mas não posso.
É que a redenção devia ser na própria coisa. E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata.
Só à idéia, fechei os olhos com a força de quem tranca os dentes, e tanto apertei os dentes que mais um pouco e eles se quebrariam dentro da boca. Minhas entranhas diziam não, minha massa rejeitava a da barata.
Eu parara de suar, de novo eu toda havia secado. Procurei raciocinar com o meu nojo. Por que teria eu nojo da massa que saía da barata? não bebera eu do branco leite que é líquida massa materna? e ao beber a coisa de que era feita a minha mãe, não havia eu chamado, sem nome, de amor? Mas o raciocínio não me levava a parte alguma, senão a continuar com os dentes crispados como se fossem de carne que se arrepiava.
Eu não podia.
Só haveria um modo de poder: se eu desse a mim mesma um comando hipnótico, e então como que eu me adormeceria e agiria sonambulicamente - e quando abrisse os olhos do sono, já teria “feito”, e seria como um pesadelo do qual se acorda livre porque foi dormindo que se viveu o pior.
Mas eu sabia que não era assim que eu deveria fazer. Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria o antipecado: comer a massa da barata é o antipecado, pecado seria a minha pureza fácil.
O antipecado. Mas a que preço.
Ao preço de atravessar uma sensação de morte.
Levantei-me e avancei de um passo, com a determinação
não de uma suicida mas de uma assassina de mim mesma.
Até que a lembrança ficou tão forte que meu corpo gritou todo em si mesmo.
Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase adocicado como o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma - eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda. “...porque não és nem frio nem quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca
E agora não estou tomando tua mão para mim..
Sou eu quem está te dando a mão.
Agora preciso de tua mão, não para que eu
não tenha medo mas para que tu não tenhas medo.
Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão.
Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: {por amor}. Como eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter apenas o destino humano.
(E solidão é não precisar).
Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência:
ela é o nosso destino maior. O amor é tão (mais fatal) do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente.
O amor já está, está sempre.
Falta apenas o golpe da graça - que se chama {paixão}.
Um comentário:
Lindo, amiga! adoro Clarice Lispector e adoro ler-te tbm!
Beijos.
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