16.1.09

Sem versos (sem) Nada.




O Amor comeu!

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia,
meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.


(Quem, eu sou - ?)

(O Amor, comeu que eu fui)

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas,
minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas
meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.



"O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia.
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso.
Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos".

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso:
pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete.
Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios:
meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro,
o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água
dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido.

Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia,
estavam cheios de água.



{O amor voltou para comer os papéis onde
irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.}


O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta
cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas.

O amor roeu (a) menina esquivo, sempre nos cantos,
e que riscava os livros, mordia o lápis.


O amor comeu meu Estado e minha cidade.
Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré.
Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu
o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros
regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo
trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana
cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de
que eu desesperava {por não saber falar delas em verso}.



(O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas).

Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que
as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta,
o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra
as futuras estantes em volta da sala.


{O amor comeu minha paz e minha guerra).
Meu dia e minha noite.
Meu inverno e meu verão.
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça
meu medo da morte..





--

"Os Três Mal-Amados" João Cabral de Melo Neto

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